sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Inconformismo

Análise particular do filme Netto Perde Sua Alma

Daniel Ânderson Müller*

Peça para um gaúcho assistir “Netto perde sua alma” e ele vibrará. Não se limitará a apreciar uma bela peça da sétima arte apenas por conta de seu gosto pelo cinema. Ele se identificará com a história, estufará o peito e não perderá a oportunidade de realçar, além das qualidades da obra, o seu orgulho por ter nascido na extremidade meridional do Brasil.

Pois eu, gaúcho orgulhoso e um pouco ufanista, assisti o filme sem ter lido o romance homônimo que o inspirou e agora, ao som de uma típica música gaúcha, me ponho a analisar o resultado do trabalho dos diretores Tabajara Ruas (também autor do romance) e Beto Souza. O filme é estrelado por Werner Schünemann, que interpreta o protagonista General Antônio de Souza Netto, herói de dois conflitos historicamente importantes: a Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai.

Atendendo primeiro a meu lado ufanista, destaco uma fala do General Netto, já nos minutos finais do filme, quando relata um diálogo que teve com o Imperador D. Pedro II, anos após o fim da Guerra dos Farrapos:

O Imperador do Brasil me disse que admirava nossa bela Província, mas que padecia muito com o ânimo belicoso dos rio-grandenses. Eu respondi que os rio-grandenses também amavam as belas artes e a democracia, e que também admirávamos essa vida tão lírica da Corte, essa Atenas tropical onde ele reinava tão graciosamente. Mas que tínhamos sustentado duzentos anos de guerras de fronteiras, e que sabíamos que mais guerras ainda viriam. Não éramos belicosos, como ele dizia, porque assim o desejávamos, mas porque, se a uns coube o destino de Atenas, a outros coube o destino de Esparta.
(Netto Perde Sua Alma, 2001)

Esta fala demonstra claramente o inconformismo e o senso de justiça presente na cultura do povo do Rio Grande do Sul. Inconformismo este que provocou uma grande guerra pela criação de uma república independente no nosso Estado. Os 10 anos da Revolução Farroupilha transformaram homens simples, defensores de seus ideais, em heróis. Apesar da República ter durado pouco, ao menos serviu para reajustar a forma com que o governo imperial tratava seus cidadãos.

O General Netto, fundador da República Farroupilha, viria a se engajar mais tarde, ao lado da Tríplice Aliança, na Guerra do Paraguai. O filme é centralizado num hospital da província de Corrientes, na Argentina, onde Netto, internado por conta de ferimentos desta guerra, e seu parceiro de batalhas, Sargento Caldeira, conversam e relembram o recente passado de lutas.

Feitas as considerações iniciais, focarei minha análise aos acontecimentos do hospital, pois não creio que seja necessário destrinchar toda a narrativa (que isto fique por conta da curiosidade de quem lê este texto e ainda não teve oportunidade de assistir o filme).

Ali, febril, moribundo e delirante, Netto percebe estranhos fatos. O mais impactante é a amputação das pernas de seu companheiro de quarto. A forte cena denota o caráter distorcido do cirurgião “carniceiro”. Caldeira tem as mesmas impressões e ambos se mostram inconformados com a conduta do médico. Outro, cujos atos merecem reprovação de Netto e Caldeira, é um paciente oriundo da guerra chamado Ramírez. Este teria matado sarcástica e covardemente dezenas de pessoas inocentes. Os dois decidem, então, fazer justiça matando os malfeitores.

Isto é inconformismo. É senso de justiça. Não que eu defenda medidas punitivas sumárias, como o assassinato, mas admiro pessoas com capacidade de indignação e que se levantam diante de uma situação de abuso e exploração por parte dos detentores do poder. Ali, no filme, o cirurgião se concedia o direito de cometer atrocidades. O tal Ramírez, durante a guerra, ordenava massacres e se vangloriava disso. Ter conhecimento destes fatos provoca a ira do espectador, que espera que aconteça a punição.

Assim também são os regimes políticos. Líderes arbitrários e sem escrúpulos aparecem aos montes na história e são depostos pelo poder de indignação do povo, pelo inconformismo dos justos, ou dos que sofrem com a opressão. Filmes de heróis demonstram que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. É da natureza humana visar o poder. É também da natureza humana o deslumbramento tendo o poder nas mãos. O poder corrompe. Mas é igualmente bem humana a indignação, a revolta diante dos mandos e desmandos e das injustiças. Netto Perde Sua Alma mostra isso, fazendo referência às guerras já citadas e mostrando o homicídio dos carrascos no hospital argentino.

Atendendo agora a meu lado gaúcho orgulhoso, devo dizer que o filme mostra mais especificamente como se comporta o povo gaúcho ante as coisas que ele julga erradas.

* Acadêmico de Licenciatura em Matemática da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.

Obs.: Texto entregue ao Programa de Aprendizagens Problemas Filosóficos e Antropológicos em 2007/2.

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